Antologia "Tabu", livro em que participo com o conto "Diários de Aurélia".
Organização de Flávia Iriarte
Organização de Flávia Iriarte
Trecho do conto:
Pode o ser humano ser bom e mal na mesma proporção?
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“Nudez, incesto, necrofilia, zoofilia, antropofagia,
eutanásia, câncer, morte, suicídio, homossexualidade, transgeneridade,
poligamia. São incontáveis os tabus que regulam nossos corpos e vida social.
Segundo as ciências humanas que se debruçaram sobre o tema, essas interdições
têm um papel fundamental na regulação da vida em sociedade. Para Claude
Lévi-Strauss, por exemplo, o incesto desempenharia uma função determinante na
própria fundação da ideia de comunidade. É apenas a partir do momento em que se
estabelece como proibida a relação sexual entre membros de um mesmo grupo
(especialmente entre mães e filhos), que as trocas entre diferentes famílias se
estabelecem de modo amplo e eficaz. Em última análise, para o antropólogo, se
não houvesse uma pesada interdição sobre o cruzamento entre membros de um mesmo
grupo, os indivíduos não teriam motivação para interagir com aqueles fora dele,
o que, no limite, aniquilaria a própria possibilidade da existência de uma
sociedade.
Talvez essa ideia, ainda hoje, soe chocante para
muitas pessoas. Afinal, não seria o incesto uma interdição natural, biológica,
uma proibição que trazemos nos nossos genes? Pensar assim (sobre o incesto ou
qualquer outro tabu) talvez tire de muitos a angústia da dúvida. Não nascemos
com a terrível propensão à homossexualidade, à prática do incesto, da
poligamia, da necrofilia, da psicopatia. Ufa!
Por outro lado, a natureza também poderia falhar
tragicamente. Não?
O fato é que os tabus existem, e não há dúvida de que
são um instrumento fundamental para a regulação da vida psíquica e social dos
indivíduos. Mas sua existência, os discursos que os legitimam ou destituem
estão longe de serem sólidos e suficientes para dar conta da vasta complexidade
do homem e das suas formas de organização. E é por isso que o debate acerca
dessas interdições sociais é tão saudável e necessária. Afinal, o tabu de hoje
pode não fazer sentido amanhã.
Eis o papel que esta coletânea de contos vem cumprir:
colocar a luz sobre este tema tão inquietante para todos nós. Pois se as
interdições têm sua função de organizar pulsões, engendrando um espaço mais
propício para a existência da diferença, elas podem também produzir doenças,
preconceitos, falsos moralismos, relações de poder problemáticas e que, em
última análise, servem justamente para corroer as bases do projeto social que,
em princípio, elas buscam viabilizar.
Mas, antes de prosseguir e chegar onde quero, preciso
contar um pouco sobre como surgiu a ideia para esta coletânea e o porquê do meu
imenso prazer em publicá-la agora.
Estamos em outubro de 2016. Dois grupos de escritores
de todas as partes do Brasil se encontram às quartas e quintas-feiras, durante
um mês, para debater acerca de suas produções literárias, em um encontro online
(bendita era digital!). Cada participante deve apresentar um projeto – romance
ou coletânea de contos – para desenvolver, o quanto possível, ao longo deste
período. Eu e a Maiara Líbano somos as encarregadas de coordenar o desafio,
fazendo a leitura dos textos e dando um retorno com sugestões aos seus
respectivos autores. Era esta a proposta da segunda edição do Curso de Escrita
Criativa do Carreira Literária.
Com o que não contávamos, no entanto, era que, além de
personagens e narradores, conflitos e pontos de virada, das nossas histórias,
terminássemos os encontros falando sobre tudo que estava por detrás delas.
Sobre nossos próprios conflitos e angústias e o quanto deles têm os nossos
personagens, sobre nossos processos de criação e o quanto eles têm de falhas e
acertos, sobre as relações – complexas e intrigantes – entre nossas vidas e
nossas ficções.
Em suma, o que não estava no script, era que, além de
contos e romances, se desenvolvessem, durante aquelas quartas e quintas,
verdadeiros laços de amizade, que extrapolaram os limites daquele outubro para
se desdobrar no tempo e no espaço.
Ao longo daquele mês, tive uma das experiências
profissionais mais gratificantes dos últimos anos, e, como o leitor talvez
agora já consiga entrever, esta coletânea foi, inicialmente, apenas um pretexto
para estender, no tempo, o prazer de estar em contato com pessoas tão
especiais. Sofrendo antecipadamente com as saudades dos nossos encontros,
decidi propor, no nosso derradeiro laboratório, que eles escolhessem um tema a
partir do qual cada participante deveria produzir um conto para integrar um
livro a ser lançado em 2017.
No nosso quarto laboratório, fizemos um exercício de
criar uma narrativa a partir de um mote preestabelecido. Um desses motes era o
conto “O livro dos recordes” (inserir referência), que tem como
narrador-personagem um pai afastado pela justiça de ver sua filha de 15 anos,
com quem fora visto num tórrido beijo de língua, na piscina do condomínio. Acho
que o tema mexeu com os alunos e, em menos de uma semana, tínhamos, já definido,
o tema da nossa coletânea: tabus.
Um psicopata necrófilo, uma família com o estanho
hábito de comer o coração dos seus mortos; uma mulher que, inspirada por Leila
Diniz, decide fazer um topless na praia e é conduzida a um interrogatório que
beira o surreal; um homem que, doente terminal, tem o direito de decidir sobre
manter ou não a própria vida negado pelo Estado; uma menina que, todas as
noites, conta as estrelas em seu quarto, enquanto precisa aceitar a mais dura
das partidas; outra que, desde cedo, descobre que os silêncios muitas vezes
guardam nomes difíceis de pronunciar. Câncer. Incesto. Suicídio. Morte. Eis um
pouco do que o leitor poderá encontrar aqui.
Talvez sejam essas palavras, muitas vezes proibidas de
serem ditas, as que mais tenham a dizer sobre nós. E esta coletânea está aqui
para isso. Para afirmar a literatura como um dos raros espaços possíveis de
liberdade.”
Boa leitura!
(Flávia Iriarte)
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