TABU

Pré-venda – Entregas após 18/07/2017




Antologia "Tabu", livro em que participo com o conto "Diários de Aurélia".

Organização de Flávia Iriarte

Trecho do conto:


Pode o ser humano ser bom e mal na mesma proporção?
               

Eu, Francisco da Silva, nasci escravo e fui escravo por mais de cinquenta anos, até que o senhor Lourenço Cavalcante me libertou. Presenciei todo o tipo de maldade que o amigo leitor ou amiga leitora possa imaginar e testemunhei na mesma proporção lindos gestos de caridade. Porém, até o dia de hoje, e olha que estou prestes a completar noventa e seis anos, não consigo decifrar Aurélia. Trabalhei para a bela e intrigante senhora desde que ela tinha dezesseis anos até a sua morte, em 1870. E, justamente por passar todos esses anos intrigado por sua história, é que deixei o pecado da curiosidade me tomar de tal forma, e trinta anos após ela nos deixar para o descanso ou sofrimento eterno, decidi ler os seus diários, pois desejo entender os seus atos de amor e ódio, antes que a morte também me arrebate deste mundo para si.


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“Nudez, incesto, necrofilia, zoofilia, antropofagia, eutanásia, câncer, morte, suicídio, homossexualidade, transgeneridade, poligamia. São incontáveis os tabus que regulam nossos corpos e vida social. Segundo as ciências humanas que se debruçaram sobre o tema, essas interdições têm um papel fundamental na regulação da vida em sociedade. Para Claude Lévi-Strauss, por exemplo, o incesto desempenharia uma função determinante na própria fundação da ideia de comunidade. É apenas a partir do momento em que se estabelece como proibida a relação sexual entre membros de um mesmo grupo (especialmente entre mães e filhos), que as trocas entre diferentes famílias se estabelecem de modo amplo e eficaz. Em última análise, para o antropólogo, se não houvesse uma pesada interdição sobre o cruzamento entre membros de um mesmo grupo, os indivíduos não teriam motivação para interagir com aqueles fora dele, o que, no limite, aniquilaria a própria possibilidade da existência de uma sociedade.

Talvez essa ideia, ainda hoje, soe chocante para muitas pessoas. Afinal, não seria o incesto uma interdição natural, biológica, uma proibição que trazemos nos nossos genes? Pensar assim (sobre o incesto ou qualquer outro tabu) talvez tire de muitos a angústia da dúvida. Não nascemos com a terrível propensão à homossexualidade, à prática do incesto, da poligamia, da necrofilia, da psicopatia. Ufa!

Por outro lado, a natureza também poderia falhar tragicamente. Não?

O fato é que os tabus existem, e não há dúvida de que são um instrumento fundamental para a regulação da vida psíquica e social dos indivíduos. Mas sua existência, os discursos que os legitimam ou destituem estão longe de serem sólidos e suficientes para dar conta da vasta complexidade do homem e das suas formas de organização. E é por isso que o debate acerca dessas interdições sociais é tão saudável e necessária. Afinal, o tabu de hoje pode não fazer sentido amanhã.

Eis o papel que esta coletânea de contos vem cumprir: colocar a luz sobre este tema tão inquietante para todos nós. Pois se as interdições têm sua função de organizar pulsões, engendrando um espaço mais propício para a existência da diferença, elas podem também produzir doenças, preconceitos, falsos moralismos, relações de poder problemáticas e que, em última análise, servem justamente para corroer as bases do projeto social que, em princípio, elas buscam viabilizar.

Mas, antes de prosseguir e chegar onde quero, preciso contar um pouco sobre como surgiu a ideia para esta coletânea e o porquê do meu imenso prazer em publicá-la agora.

Estamos em outubro de 2016. Dois grupos de escritores de todas as partes do Brasil se encontram às quartas e quintas-feiras, durante um mês, para debater acerca de suas produções literárias, em um encontro online (bendita era digital!). Cada participante deve apresentar um projeto – romance ou coletânea de contos – para desenvolver, o quanto possível, ao longo deste período. Eu e a Maiara Líbano somos as encarregadas de coordenar o desafio, fazendo a leitura dos textos e dando um retorno com sugestões aos seus respectivos autores. Era esta a proposta da segunda edição do Curso de Escrita Criativa do Carreira Literária.

Com o que não contávamos, no entanto, era que, além de personagens e narradores, conflitos e pontos de virada, das nossas histórias, terminássemos os encontros falando sobre tudo que estava por detrás delas. Sobre nossos próprios conflitos e angústias e o quanto deles têm os nossos personagens, sobre nossos processos de criação e o quanto eles têm de falhas e acertos, sobre as relações – complexas e intrigantes – entre nossas vidas e nossas ficções.

Em suma, o que não estava no script, era que, além de contos e romances, se desenvolvessem, durante aquelas quartas e quintas, verdadeiros laços de amizade, que extrapolaram os limites daquele outubro para se desdobrar no tempo e no espaço.

Ao longo daquele mês, tive uma das experiências profissionais mais gratificantes dos últimos anos, e, como o leitor talvez agora já consiga entrever, esta coletânea foi, inicialmente, apenas um pretexto para estender, no tempo, o prazer de estar em contato com pessoas tão especiais. Sofrendo antecipadamente com as saudades dos nossos encontros, decidi propor, no nosso derradeiro laboratório, que eles escolhessem um tema a partir do qual cada participante deveria produzir um conto para integrar um livro a ser lançado em 2017.

No nosso quarto laboratório, fizemos um exercício de criar uma narrativa a partir de um mote preestabelecido. Um desses motes era o conto “O livro dos recordes” (inserir referência), que tem como narrador-personagem um pai afastado pela justiça de ver sua filha de 15 anos, com quem fora visto num tórrido beijo de língua, na piscina do condomínio. Acho que o tema mexeu com os alunos e, em menos de uma semana, tínhamos, já definido, o tema da nossa coletânea: tabus.

Um psicopata necrófilo, uma família com o estanho hábito de comer o coração dos seus mortos; uma mulher que, inspirada por Leila Diniz, decide fazer um topless na praia e é conduzida a um interrogatório que beira o surreal; um homem que, doente terminal, tem o direito de decidir sobre manter ou não a própria vida negado pelo Estado; uma menina que, todas as noites, conta as estrelas em seu quarto, enquanto precisa aceitar a mais dura das partidas; outra que, desde cedo, descobre que os silêncios muitas vezes guardam nomes difíceis de pronunciar. Câncer. Incesto. Suicídio. Morte. Eis um pouco do que o leitor poderá encontrar aqui.

Talvez sejam essas palavras, muitas vezes proibidas de serem ditas, as que mais tenham a dizer sobre nós. E esta coletânea está aqui para isso. Para afirmar a literatura como um dos raros espaços possíveis de liberdade.”

Boa leitura!


(Flávia Iriarte)

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